Cerca de 600 mil brasileiros coletam 90% do material reciclável recuperado. Nas mãos deles estão o sucesso e o futuro da reciclagem.
Victor Moriyama
Seu
João, mais conhecido como "Véio", compra e vende material reciclável na
Rua 25 de Março, em São Paulo. O comércio informal dos catadores
movimenta cerca de 30 toneladas de papel e alumínio por mês. Em
dezembro, pode chegar a 50 toneladas.
Quando saiu do lixão Canabrava, no bairro de mesmo nome, em Salvador, em 1989, Sérgio da Silva Bispo, hoje com 50 anos, estava atraído pela possibilidade de ganhar a vida em São Paulo. Sem nenhum dinheiro no bolso, conta ele, foram longos 80 dias de viagem a pé e de carona para percorrer os dois mil quilômetros de estrada que separam as duas capitais. Ao chegar à maior cidade do país, percebeu que não seria fácil achar uma oportunidade, ainda mais sem educação formal. Naquele ano, o Brasil passava por uma grave crise econômica. Não houve jeito. Bispo, como prefere ser chamado, teve de morar na rua e encontrar sustento na mesma atividade que exercia antes: catar resíduos recicláveis do lixo para revender. "Desde os cinco anos de idade eu trabalhava no lixão com minha mãe, que também era catadora. Era a única coisa que sabia fazer", diz ele, sem esconder que preconceito e falta de educação sempre foram dificuldades a enfrentar. "Muita gente não gosta de catador. Acha feio ou perigoso, sem pensar que é um trabalhador como qualquer outro. Tenho uma rotina puxada para dar conta do tanto de lixo que essa gente joga fora", conta Bispo. Sua primeira garimpagem começa às 5h30 e, em dias mais carregados, prossegue até a 1 hora da madrugada, quando faz a última coleta em restaurantes clientes de sua cooperativa. Ele calcula que percorre 20 quilômetros por dia, distância que fazia de carroça, antes de conseguir um caminhão, financiado pela Petrobras, em agosto deste ano.
Bispo também é presidente da Cooper Glicério, cooperativa que reúne 33 catadores como ele, localizada sob o viaduto do Glicério, em uma das regiões mais degradadas do centro de São Paulo. "Bem no olho do furacão", como gosta de dizer. Embora essa analogia sugira uma imagem caótica, a bagunça da cooperativa é só aparente, pois o trabalho ali realizado tem uma lógica de produção para a máxima eficiência na triagem das 120 toneladas de lixo, reunidas por mês.
A organização, combinada à larga experiência de Bispo na coleta, tem sido caso de estudo de diversas empresas e vários governos. "Em 2006, fui para um evento em Porto Alegre, com alguns políticos e empresários famosos. Disseram que eu ia palestrar sobre logística e layout de produção. Não tinha a menor ideia do que estavam falando até me explicarem o que era. Para minha surpresa, fiz aquilo nos últimos 25 anos", relata.
Como Bispo, estima-se que, hoje, o país tenha cerca de 600 mil catadores, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Estudo de 2011 feito pelo Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre), entidade que reúne empresas como Coca-Cola, Unilever e Gerdau, calcula que 90% dos resíduos recuperados passam pelas mãos desses milhares de brasileiros, que recolhem o material das ruas das metrópoles ou o coleta dos lixões do país. "A maior parte do trabalho de reciclagem é feita por eles. Os catadores desempenham um papel de imenso valor estratégico para a indústria, além de prestarem um importante serviço ambiental pelo qual são pouco valorizados", diz Albino Rodrigues Alvarez, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea, em que coordenou um estudo sobre o assunto. Segundo Alvarez, é por ter desempenho relevante e experiência nos processos de reciclagem que eles são reconhecidos na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), que entra em vigor em 2014, como importantes agentes para sua execução. "Essa inclusão é um grande ganho social da política. Por meio dela, os municípios são obrigados a criar planos de gestão de resíduos sólidos e coleta seletiva que integrem os catadores e invistam no desenvolvimento das cooperativas", explica.
Segundo o Ipea, só 10% dos catadores pertencem a cooperativas. Seria bom que esse índice aumentasse, pois a renda média mensal de um cooperado vai de R$ 800 a R$ 1 300, valor máximo alcançado em São Paulo. Os não cooperados recebem, em média, R$ 570. As cooperativas, em que todos trabalham e dividem os lucros, organizam os processos de coleta e triagem dos recicláveis em diferentes cadeias e profissionalizam a atuação dos catadores, facilitando a contratação por empresas e a venda de materiais a preços competitivos. "Nesse sistema, há uma verticalização de trabalho, com a criação de unidades produtivas, como coleta, triagem, criação de estoque e venda. Isso torna mais fácil ganhar escala para venda, sem a presença de tantos intermediários entre o catador e a indústria da reciclagem", esclarece Mário Aquino, professor de administração e orientador de projetos da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de São Paulo.
No Brasil, segundo a Cempre, em 2012, o faturamento do mercado de triagem e coleta de recicláveis girou em torno de R$ 712,3 milhões, mas só R$ 56,4 milhões (8% do total) ficaram com as cooperativas; o restante concentrou-se nas mãos dos atacadistas. Uma forma de distribuir melhor esses recursos está sendo colocada em prática na cidade de São Paulo, em que algumas cooperativas, por não ter espaço para verticalizar ou incorporar outras cadeias ao processo, começaram a se organizar em redes. É o caso da Cooper Glicério, de Bispo. "Além de criar uma capilaridade territorial na coleta seletiva, permite compartilhamento mais eficiente da tecnologia operacional, como prensas e esteiras de triagem, e da tecnologia social, como a organização do modelo de uma cooperativa melhor estruturada, que se torna um polo difusor", diz Aquino, da FGV.
Dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) mostram que 31,9% do lixo recolhido no Brasil, a chamada fração seca dos resíduos sólidos, corresponde a 18 milhões de toneladas, entre plástico (13,5%), papéis (13,1%), metais (2,9%) e vidro (2,4%). Ao cotejar esses dados com os da Cempre e do Ipea, estima-se que apenas 27% dessa fração seca esteja, de fato, sendo reciclada - o restante se perde em aterros e lixões. O que se deixa de ganhar é considerável. Em 2010, um estudo revelou que o Brasil jogava fora cerca de R$ 8 bilhões, por não reciclar o que poderia ser reaproveitado. "Hoje, esse valor deve ser de R$ 10 bilhões", conta Albino Alvarez, do Ipea, que coordenou o levantamento. Se estiver certo, significa que a indústria brasileira de reciclagem, da coleta ao processamento, perde um potencial suficiente para dobrar de tamanho. Ou seja, o desperdício é gigantesco.
O fato é que a indústria brasileira da reciclagem de resíduos sólidos anda a passos de tartaruga desde 2009. O único setor que se destaca é o da reciclagem de latinhas de alumínio (veja na tabela acima, à direita, o total reciclado de cada setor). Segundo dados divulgados pela Associação Brasileira do Alumínio (Abal), 473 mil toneladas do material foram recicladas em 2011. É um número impressionante, já que, naquele ano, a produção de alumínio primário no Brasil foi de 1 440 toneladas - ou seja, a quantidade de alumínio reciclado é quase 330 vezes maior que a de material virgem. O alumínio está presente em vários setores da economia, como nos transportes, na construção civil, em bens de consumo, na geração de eletricidade, além de maquinários e equipamentos. Mas nada supera seu uso na produção de latinhas para envazar bebidas. Cerca de 30% do alumínio utilizado no Brasil tem essa finalidade, e quase todas as latinhas produzidas depois são recicladas. Em 2011, por exemplo, segundo dados da Abal, 98,3% das 19,8 bilhões latinhas coletadas no país foram reaproveitadas (leia a tabela, no final deste texto: O bom exemplo das latinhas).
Um dos motivos que justificam esse êxito é o fato de o alumínio ser o material mais caro na revenda para reciclagem pós-consumo: 1 quilo (ou 74 latinhas) vale de R$ 2,50 a R$ 3. Em 2012, a atividade movimentou cerca de R$ 1,3 bilhão - R$ 382 milhões foram investidos para aprimorar o sistema de coleta. Entre outros benefícios, o uso de latinhas recicladas gera uma economia considerável de energia para o país: cerca de 2 922 GWh/ano, segundo a Associação Brasileira dos Fabricantes de Latas de Alta Reciclabilidade (Abralatas). Ou 1% da energia total produzida, o suficiente para iluminar uma cidade do tamanho de Campinas (SP), com 1,2 milhão de habitantes.
Do descarte, vazia, ao retorno, cheia, à prateleira, à espera do consumidor, a latinha percorre até dez etapas diferentes. Primeiro, ela passa pela coleta e triagem nas cooperativas. Depois, é encaminhada às empresas atacadistas. A seguir, é prensada em grandes fardos, como são chamados os pacotes com até 60 quilos cada um, vendidos à indústria de reciclagem. A próxima etapa é a fundição, em que o material é derretido em fornos com temperaturas acima de 660 graus Celsius - ponto de fusão do alumínio. Dali vai ao lingotamento, em que o material é colocado na forma de pesadas tiras, o que é apropriado para o processo de deformação, que o transforma em novas lâminas de alumínio. Nas bobinas industriais, essa lâmina ganha o formato de lata e é vendida à indústria de bebidas. Nas fábricas de suco, refrigerante ou cerveja, a lata reciclada ainda passa por um processo chamado de "enchimento", no qual uma máquina injeta ar com alta pressão para que ela se expanda e ganhe a forma tradicional que conhecemos. Por fim, coloca-se a bebida, e a lata é selada e distribuída aos pontos de venda no varejo. Depois de descartada, em pouco tempo, voltará ao circuito. A demanda é tão alta e o processo de reciclagem tão bem estruturado, que o ciclo completo de reciclagem de uma latinha passou de 45 dias, na década de 1990, para os atuais 30 dias.
São Paulo, a maior metrópole do país, tem 22 cooperativas que trabalham na coleta seletiva e são conveniadas à prefeitura. Elas atendem a 75 dos 92 distritos da cidade, atingindo 42% dos domicílios paulistanos. Mesmo assim, só 1,9% das 18 mil toneladas de lixo geradas por dia é reciclado. Espera-se um grande salto nesse índice para 2014, quando São Paulo terá duas megacentrais de triagem de recicláveis, cada uma delas com capacidade para 250 toneladas de material a cada 24 horas. "Hoje, só atingimos 249 toneladas por dia. Com as novas centrais, chegaremos a 10% de todo o lixo gerado na cidade", conta Pablo de Oliveira, gestor ambiental do departamento de limpeza urbana da prefeitura. "Além disso, é preciso modernizar as cooperativas já existentes com novos sistemas de triagem, equipados com esteiras elevadas de maior capacidade e sensores ópticos de barreira para a separação dos materiais", diz ele, ressaltando que busca a aprovação de uma linha de crédito de R$ 108 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
A longo prazo, a meta é audaciosa: reciclar 84% de todo o lixo paulistano até 2032. Não é impossível alcançar esse índice se tudo correr como planejado. A atual gestão da Autoridade Municipal de Limpeza Urbana (Amlurb) prevê dobrar para 140 os ecopontos, centros de entrega voluntária de entulho das construções para reciclagem, além de implantar programas de aproveitamento do lixo orgânico. Um piloto de compostagem (método de reciclagem para produção de adubo) caseira será testado em 2 mil casas até o fim do primeiro semestre de 2014. Espera-se também estender um bem-sucedido projeto de uma feira livre no bairro de São Mateus, zona leste de São Paulo, que produz adubo com base nos resíduos deixados pelos feirantes.
Pensar em reciclar 100% do lixo de uma metrópole pode parecer impossível, mas esse é o objetivo para 2020 da cidade de San Francisco, na Califórnia, Estados Unidos. A meta não parece inalcançável, já que, no momento, cerca de 83% dos resíduos sólidos são reaproveitados. Há 11 anos, o projeto San Francisco Zero Waste tem mostrado que o caminho para envolver a população está na criação de incentivos financeiros. "As pessoas sabem que é importante reciclar. Temos coleta seletiva há mais de 20 anos que atende a todos os domicílios da metrópole. Mas só quando passamos a obrigar a compostagem caseira e a oferecer descontos de até 30% no imposto cobrado pela coleta de quem separa o lixo de forma correta e a multar quem não o faz é que os números melhoraram", diz Kevin Drew, coordenador do programa no departamento de meio ambiente da cidade americana. Ele acredita que essa prática também pode funcionar nas metrópoles brasileiras, uma vez que a Política Nacional de Resíduos Sólidos baseia-se no princípio "poluidor-pagador e protetor-recebedor". "O Brasil tem uma grande vantagem: os catadores. Se a experiência deles for aproveitada e mais bem remunerada pelo importantíssimo serviço ambiental que prestam, cidades como São Paulo podem reciclar 100% da fração seca do lixo até antes de nós", diz.
O BOM EXEMPLO DAS LATINHAS
O processo de reciclagem de embalagens de alumínio (à esquerda) está tão bem difundido e organizado que uma lata de cerveja ou refrigerante, após ser descartada, em 30 dias retorna à gôndola do supermercado. Em 1990, levava cerca de 45 dias.